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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Paganismo no Brasil: identidade e natureza

Começo afirmando categoricamente que a espiritualidade é algo único, cada um tem a sua, não há fórmulas prontas para trilhar o caminho da espiritualidade, não é mesmo?
No Paganismo então, isso é expresso muito abertamente. Aliás, o Paganismo é um caminho espiritual que oferece uma certa liberdade: você pratica solitariamente, ou em grupo; você está numa relação de discípulo-mestre ou você é auto-didata; você presta homenagem aos deuses do panteão egípcio ou você acende uma vela para Dionísio aqui e outra para Shiva ali, etc.; você faz rituais seguindo a roda do hemisfério Sul, Norte ou ainda pode misturar as duas; você pode ter diversas versões do mesmo fundamento mágico... enfim, são muitas coisas.
Acho que isso é esperável tratando-se de uma religião que não é UMA religião só e sim muitas, variando no tempo e no espaço, que não possui uma organização vertical para ditar dogmas, e é tão antiga quanto a humanidade, além de ter sofrido uma série de distorções e censuras ao longo do tempo, como a que a santíssima inquisição causou.

Mas peraí! Isso não é motivo para passar por cima de certos fundamentos! Ou pelo menos deveríamos ficar mais atentos a eles e refletir sobre nossas concepções e práticas. Uma das preciosas vantagens dessa "liberdade de crença" dentro do Paganismo é que não precisamos ser adestrados a acreditar para sermos aceitos, nós podemos refletir e aceitar de coração aberto.
Então vamos refletir sobre duas questões que já dão o que falar:

Uma delas é a velha e polêmica "seguir a roda do norte, a roda do sul, ou roda mista?". Ok, vamos voltar a um fundamento do Paganismo: é uma religião de adoração/ celebração dos ciclos da natureza. Esta é uma das características básicas de qualquer vertente pagã. E que natureza é esta? Para mim está obvio que esta natureza é o chão que você pisa, é a água que você bebe, as frutas que te alimentam, o ar que é brisa ou ventania, é o sol ou a chuva que você toma... ou seja, é a natureza que está aqui, no meio ambiente em que você vive, é sentir mais frio no solstício de inverno, é sentir as fogueiras de "Beltane" no desenrolar da Primavera...
Logo, não vejo sentido comemorar calor/ expansão enquanto a terra está fria e em recolhimento, em nome de uma suposta "egrégora". Não esqueçamos que somos nós humanos que criamos e REcriamos egrégoras, muito mais poderosas são as energias que emanam da natureza!

Outra polêmica ainda mais delicada e subjetiva é da identidade no paganismo. Aliás, não só é complicado falar sobre isso por ser uma questão subjetiva espiritual, mas também até certo ponto política. Mas o detalhamento da questão política fica para outro post...

O que mais vejo por aí são pagãos claramente de origem racial negra e/ou ameríndia identificando-se como "pagão celta"/ "pagão nórdico" / "pagão etrusco", -tudo- menos um paganismo com bases africanas ou ameríndias. Ora, nada contra uma pessoa afro-descendente se identificar e prestar homenagens à deusa celta Brigit ao invés da deusa africana Iemanjá, por exemplo! Acho isso perfeitamente cabível, já que a espiritualidade é muito pessoal.

Porém, observemos um fundamento do Paganismo: é uma religião de honra aos ancestrais.
  • Os ancestrais são seus entes familiares que já se foram e que fundaram sua família;
  • Os ancestrais são os Deuses da(s) cultura(s) que deu/ deram origem a você.
  • Os ancestrais são os Antigos que habitaram esta terra antes de nós, independente de termos uma ligação cultural ou espiritual com eles ou não.
Visto isso, mesmo que um pagão não honre todos seus ancestrais, ele lhes deve no mínimo consideração. [Consideração abrange uma série de posturas, reflita leitor.] Penso que seja um paradoxo [num exemplo bem ilustrativo] um pagão que mora na terra Brasilis, sabendo que tem uma origem mestiça, viver num suposto mundo "nórdico", sonhando em ser viking nas geladas florestas coníferas, empunhando uma bandeira da Noruega, tomando hidromel no chifre em honra a Odin, sem sequer lembrar que seu bisavô era índio e reverenciava Bep Kororoti; que sua pele é parda e seu cabelo é crespo; que sua língua-mãe é o português; que é dezembro e que o Sol está queimando como fogo; que no inverno a maioria das árvores a sua volta deram outros sinais em vez de queda de folhas; que aqui nas matas tem caipora e tem caboclo...

A questão aqui não é que "se nasceu no Brasil tem que acender vela pra caboclo..." de forma nenhuma, ninguém precisaria deixar de lado sua admiração e afinidade com a cultura e religião de outras terras, mas, tantas riquezas pessoais e locais que poderiam ser acrescentadas a essa afinidade espiritual com terras distantes, são ignoradas e muitas vezes, pasmem, desrespeitadas!

Para que tentar ser "o outro", ser algo que você já nasceu não sendo, se você pode ser você mesmo? É no mínimo um paradoxo, para não dizer uma farsa.

Como pagãos, devemos sim, respeitar os ancestrais da terra, no mínimo honrando sua memória ao fazermos rituais ou oferendas.

Quem vos escreve é Falcão Marrom: simpatizante da magia rúnica; devota da deusa nórdica Freyja; com ancestralidade marcadamente ameríndia tupi e comprovadamente hispano-lusitana; admiradora das religiões de raiz africana e bastante afim com a energia do orixá Iemanjá; quando precisa canta mantras em gratidão ou prece a deusa hindu Saraswati e quando cabe, usa seu cachimbo xamânico em rituais. E etc., cada coisa no seu tempo-espaço apropriado.

Não me sinto menos pagã por essa diversidade, aliás me sinto mais pagã do que nunca, alinhando-me e conhecendo os ciclos da natureza que me nutre e reverenciando a minha ancestralidade e honrando os ancestrais donos da terra.

~~Bons Ventos~~

5 comentários:

Ana Luiza disse...

Um dos melhores post do nosso blog(se nao o melhor).
Lembrando que o nosso espirito eh livre,nao tem nacionalidade,e por isso podemos sentir afinidade por qualquer cultura,independente de nossa origem ou cor de pele.Mas nunca,nunca,podemos nos esquecer de nossa origem dessa vida,devendo-lhes respeito e reverencia!
Lindo post Falcao!

Lu Falcoa disse...

Obrigada querida! rs
Foi bom vc ter reforçado no seu comentário, q fique claro q eu não tenho nada contra uma afinidade com deuses e rituais de outras culturas distantes da nossa!

Mosca disse...

Ah adorei este postei , sem duvida um dos melhores rss ^^ har\0/.

Fábio Escorpião disse...

Olá.

Vim até este post depois a partir de um link em um comentário seu aqui: http://parahybapagan.wordpress.com/2008/05/15/o-eurocentrismo-no-paganismo-brasileiro-contemporaneo-2/

Esse ponto do paganismo contemporâneo muito me interessa.

Estranhamente, sou ateu, mas tenho uma forte inclinação e interesse pela pluralidade étnica e espiritualística da humanidade, em especial a brasileira, e acabo por encarar as diversas divindades como nomeações diferentes para os fenômenos da natureza (física ou humana). Então, penso eu, vendo por esse prisma não faria diferença alguma eu chamar a lua de Jaci, Diana, Mon ou Ártemis, mas, e o que é mais interessante, o assunto não se encerra aí (ainda bem que não se encerra, porque o paganismo, moderno ou antigo, é incrivelmente interessante e diverso).

Devemos também ter em mente que somos corpo, somos matéria, e temos uma dívida de gratidão por todos os nossos ancestrais que contribuíram para que, HOJE nós tenhamos os nossos corpos para viver neste universo, neste mundo, nesta terra, e devemos realmente honrá-los.

Outro fator, e isso eu já não acredito mais, mas a maioria dos neopagãos acredita, é a questão espiritual (lembrando que, como ateu, eu observo as divindades como arquétipos e nomeações variadas de fenômenos da natureza física e humana). Como já disseram mais acima, o espírito não têm nacionalidade e, para quem acredita, pode ter reencarnado em diversos lugares e em diversas épocas diferentes, e experimentado, por isso, diversas espiritualidades diferentes, e na vida atual, graças ao praticamente ilimitado acesso de informação pelo mundo, as pessoas podem conhecer espiritualidades diversas e "sentir" uma conexão maior com uma ou outra, mesmo que nada tenha a ver com o seu local de nascimento e onde seus ancestrais viveram.

Aliás, voltando a falar dos ancestrais, não podemos esquecer também que nós, brasileiros, somos uma mistura de povos de praticamente todas as partes do mundo, e, por isso, temos ancestrais espalhados pela América, África, Europa, Ásia...

Enfim, a espiritualidade é uma coisa fluida (ainda mais nos tempos atuais, onde tudo parece ser fluido) e temos acesso a diversas denominações existentes em todo o globo e em toda a história. Tenho um amigo negro que é fissurado pela cultura japonesa e, se fosse pagão, certamente adoraria Amaterasu, Izanami, Izanagui e Yomi. Eu sou mulato, baiano, com muitas gerações já firmadas aqui no meu estado (e um pezinho lá na Península Ibérica), mas tenho um amor indescritível pela cultura grega antiga e, como interessado no paganismo, tenho uma inclinação muito maior pelo helenismo (reconstrucionismo helênico) do que pelo candomblé.

No entanto, aprendi a gostar e a respeitar a espiritualidade da minha terra e dos meus antepassados, me identifico fortemente com o deus orixá Logun-Edé e, quando penso na natureza, costumo chamá-la poeticamente pelos seus nomes tupis (Ci, Jaci, Coaraci, Tupã, Anhangá, Araci, Iara, Jurupari, Ceuci, Rudá, Kurupi, Mboitatá, Mboiúna... [são tantos e parecem infinitos, e tão lindos rssrrs]).

A(s) espiritualidade(s) brasileira(s) é(são) riquíssima(s) e devemos pensar que é uma honra, um prazer e um privilégio vivermos imersos nela(s) e devíamos é tirar proveito disso, para sermos pessoas cada vez melhores neste universo.

Lu Falcoa disse...

Obrigada pelo seu depoimento Fábio, muito enriquecedor!